domingo, 29 de março de 2020

Eu não Acredito em Bruxas, Mas que Elas Existem, Existem

"Mudai um homem de classe, condição e circunstâncias, vós o verei mudar imediatamente de opiniões e de costumes."

A crença em entidades fantasmagóricas, demoníacas ou deidades é uma manifestação cultural universal, ou seja, não é limitada a uma região ou a um período histórico. Fantasma, como conhecido atualmente, é a alma de uma pessoa morta que se manifesta no mundo dos vivos de uma maneira qualquer, podendo, eventualmente, até interferir na realidade física. Geralmente, os fantasmas são considerados espíritos que desejam vingança, ou que ficaram presos em um local devido um trauma sofrido. Do ponto de vista do ceticismo científico, não há nenhuma evidência da existência deste tipo de entidade, de forma que presenciar fantasmas pode estar associado a: diferença de pressão atmosférica no ambiente (bater de portas e janelas); jogo de luzes e sombras; aumento da sensibilidade da visão periférica; concentração elevada de monóxido de carbono, que geralmente causa alucinação; fogo-fátuo, um gás fosforescente resultante da decomposição orgânica em áreas pantanosas e cemitérios. Enfim, fato é que fantasmas, reais ou produto da imaginação, inequivocamente, estão associados a um mundo espiritual que transcende a realidade física.

Lembro-me de uma conversa com um colega ateu, há muito tempo. Naquela época, eu ainda não era religioso, apesar de não ser ateu, mas já achava estranha uma opinião dele. Ele não acreditava em Deus de maneira alguma, defendia que era uma invenção da mente humana. Porém, ao mesmo tempo, ele tinha medo de fantasmas. Com o perdão da palavra, se "borrava" todo. Eu não conseguia conceber aquela ideia, pois, para mim, Deus, espíritos, anjos, fantasmas e demônios já faziam parte do mesmo universo. Claro que, atualmente, a crença que pratico me faz dividir tudo isso em somente duas categorias, mas não vem ao caso.

Lembrei daquele colega, porque recentemente deparei-me com esse mesmo tipo de... digamos, incoerência (preguiça de pensar em uma palavra melhor). Vou precisar de alguns parágrafos para explicar meu ponto (como se você que acompanha meus textos já não soubesse disso).

Alguém já disse que não acredita na fé, porque ela é um instinto humano primitivo (acho que há uma confusão nessa ideia, entre acreditar e submeter-se - spoiler). E que, justamente por ser algo primitivo, no sentido de gerar vulnerabilidade, ela pode ser usada como arma contra nós. Dessa forma, isso sugere que os que se "entregam" a fé são alienados e manipuláveis.

No ensaio "Sobre a obstinação na crença", C. S. Lewis cita alguns argumentos de sua época contra a fé. Entre eles... "Alguns dizem que ela é uma projeção de nossos medos primitivos, como Capaneus em Estácio. Outros, como Evêmero, dizem que ela é apenas um 'embuste' tramado por reis, sacerdotes ou capitalistas ímpios. Alguns ainda dizem que ela vem de sonhos sobre mortos, como Tylor. Tem quem tenha dito que ela é um subproduto da agricultura, acompanhando Frazer. E finalmente, tem aqueles que acreditam que ela não é nada além de um complexo, uma 'neurose obsessiva da humanidade', uma 'ilusão inimiga da ciência', cita-se Freud."

Analogamente, tomando como referência a obra "A origem das espécies" de Darwin, pode-se dizer que o ser humano se multiplica e vive anos cada vez mais prolongados devido a um instinto de adaptação, que tem como objetivo a perpetuação da espécie. Pois não seria esse instinto "primitivo", de adaptar-se em prol da sobrevivência, tão perigoso quanto a fé?

Desviando: Note a palavra primitivo entre aspas, porque quando a usamos aqui, associada a instinto, de fato não sabemos o que ela significa. Mesmo assim, ela desperta em nós algo que parece soar familiar e, justamente por soar familiar, acreditamos que faz todo sentido estar ali, sem que façamos nenhum tipo de questionamento. Eu chamo isso de plantar uma ideia na mente. Perceba, que tipo de instinto não é primitivo? Então, por que o uso dessa palavra associada a instinto?

Voltando: Quem garante que alguém que acredita que só os mais adaptados se perpetuam não venha em algum momento julgar ser ou pertencer ao grupo dos mais adaptados? Que consequências isso teria se esse individuo tivesse poder, ou exercesse influência, sobre um grupo de pessoas que possui a mesma crença? Se essa pessoa fosse um ufanista, racista, ou nacionalista extremo, que consequências enfrentaríamos? Acreditar na adaptação das espécies não implica em um certo nível de vulnerabilidade também? Enfim, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

Então, comparando os dois instintos citados, a fé e a adaptação, e sabendo da aceitação média de cada um deles pela maioria dos indivíduos (pendendo para a segunda opção), analogamente ao meu colega que não acreditava em Deus, mas acreditava em fantasmas, percebo que, quanto ao assunto fé, o problema não é o fato de esta ser um instinto, se é que de fato ela o é, mas sim o fato de não querer se submeter a ela, com a desculpa de que ela nos deixará "vulneráveis" (olha as aspas aí de novo; que instinto não nos deixa vulnerável?).

Eu já disse aqui que inclino-me a requerer provas para ser convencido de algo que não quero acreditar. Eu crio obstáculos intransponíveis de propósito. Por outro lado, não demando prova nenhuma para acreditar no que desejo crer. Sendo assim, o instinto só é válido quando é conveniente. Do contrário, tomo-o por asfixiante.


Voltando: Concluindo, ou se diz que todos os instintos são maus, ou se diz que todos eles são bons. Ou nós acreditamos em todos os instintos, ou não acreditamos em nenhum deles. O que não se pode dizer é que um instinto é melhor que o outro, ou que um deve existir, mas o outro não, convenientemente aos nossos interesses. Ou pensamos melhor nas desculpas que estamos usando para fundamentar nossas decisões, ou definitivamente nos responsabilizemos por nossas convicções. Não dá para não se comprometer para sempre. Afinal de contas, bruxas existem ou não existem?