quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Toque de Midas

"Observou-se mal a vida se não se tiver visto também a mão que, de uma maneira especialmente cuidadosa - mata."

Segundo a lenda do Toque de Midas, o deus grego Dionisio (ou Baco, no caso dos romanos) deu por falta de seu tutor, Sileno, que bebera demais e se perdera pelo caminho. Alguns camponeses encontraram o velho e o levaram até o rei Midas, que cuidou dele por treze dias antes de devolvê-lo. Agradecido pela presteza, Dionisio concedeu um desejo a Midas. O rei, então, pediu que tudo quanto tocasse virasse ouro, pois, embora vivesse em abundância e fosse muito rico, sempre desejava aumentar suas posses. O deus, mesmo triste por não ter ouvido um pedido nobre, consentiu com o desejo, pois havia feito a promessa. A partir de então, tudo o que o rei Midas tocava se transformava em ouro. As flores, as pedras, os objetos, os animais e até os alimentos que tentava levar a boca. Desesperado, frente a possibilidade de morrer de inanição, sofreu o golpe final quando sua filha veio ao seu encontro. Na tentativa de afastá-la, acabou tocando-a acidentalmente. Muito consternado, Midas orou a Dionisio para que este desfizesse o pedido. Misericordioso, o deus grego atendeu à prece e orientou que todos os objetos de ouro fossem banhados em água corrente, de maneira que retornassem à forma primitiva. Assim Midas procedeu e teve sua filha de volta.

Desviando: Essa lenda adquiriu um caráter metafórico nos tempos atuais. Hoje, um individuo que tem o Toque de Midas é alguém que consegue fazer prosperar todos os negócios nos quais se envolve, ou que faz multiplicar os lucros de tudo em que investe. Mas é estranho, pois a lenda parece querer me ensinar outra lição, justamente contrária a instintiva sensação de que posses trazem felicidade.

"Primeiro vem a benção
De tudo o que você sonhou
Mas aí vêm as maldições
De diamantes e anéis
A princípio pelo menos, tinham seu encanto
Mas agora não dá para separar o falso do verdadeiro"

Voltando: Lembrei-me do toque de Midas quando fiz um "pacote" mental com algumas coisas muito estranhas que ouvi, vi e presenciei ao longo de um período qualquer. Vou citar poucas delas e fazer alguns comentários separados entre parênteses. Ah, e no final do texto vou explicar porque esse "pacote" me fez lembrar da lenda.

Havia uma criança que não largava o celular por nada. Ela gostava muito de usar um aplicativo que simulava relacionamentos interpessoais, para poder se desenvolver emocionalmente. (Hoje, a tecnologia está muito avançada mesmo. Alguém já disse que ela nos ajuda a resolver um bocado de problemas que não existiam antes de ela aparecer.)

Um cachorro, após alguns anos de certo conforto, fora abandonado por seus antigos donos. Hoje ele está mutilado, pois foi encontrado por um homem que o usa para treinar outros cães para rinhas. (O importante é não perder a esperança. Esse mundo é um lugar cheio de oportunidades, nem que seja para servir de saco de pancadas, mesmo perdendo uma pata e ganhando várias cicatrizes durante algumas surras. O que mais se pode querer, além de um canto para dormir à noite e um pote de água? – sim, fui irônico. Aliás, fico tentando imaginar o que passa pela cabeça de um cachorrinho desses quando está tudo em silencio no escuro.

Um homem viu um rapaz roubando uma bicicleta. Então, o atropelou em um ataque de fúria. O senhor passou diversas vezes com o carro sobre o corpo do morto e disse que em um mundo, cuja Justiça não defende mais o cidadão de bem, alguém tem que fazer alguma coisa. (Lembrei-me de Clarice, no conto Mineirinho. Na ocasião ela falou de tiros, mas bem que poderia ser de múltiplo atropelamento: "Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.")

Uma mulher, sem perceber, teve o pneu de seu carro furado por um homem. Enquanto ela esperava por ajuda, foi levada para uma casa onde acabou sendo estuprada e esfaqueada até a morte. (Infelizmente ela não estava usando tapa mamilos. Dizem que eles tem um poder muito grande na luta em defesa da mulher – sim, ironia novamente; é bom deixar explicado.)

Fiquei sabendo de um funcionário, de uma empresa qualquer, que se fez de humilde para o chefe, humilhou o subordinado e "puxou o tapete" do colega de mesmo nível hierárquico. (Finalmente, as técnicas de coaching estão servindo para alguma coisa. O sucesso é a chave de tudo, – ironia? – E sendo esse tipo de comportamento a chave, eu me pergunto, que tipo de porta se quer abrir? Talvez seja para o País das Maravilhas.)

O atual presidente da república, após uma declaração preconceituosa, terminou uma oração fazendo um sinal de arma com a mão. Enquanto isso, a oposição dedilhava uma música maliciosa na viola, às 10h da manhã, em canal aberto, agitando o gelo do whisky com o dedo, vestindo apenas roupas íntimas. (Talvez devêssemos voltar ao governo dos antigos deuses gregos e romanos, pois, naquela época, a luta pela emancipação divina nos prometia um futuro melhor do que o futuro em que vivemos. Não dizem que o melhor da festa é esperar por ela?)

Enfim, por falta de paciência de minha parte (mentira, é que começou a ficar muito longo), o "pacote" mental de coisas estranhas termina aqui. Mas não fique triste, pois a TV, a internet, as ruas, o trabalho, a escola, o parque, todos estão cheios de exemplos. É só querer ver.

Agora vem a explicação, o motivo pelo qual todos aqueles pontos me remeteram à lenda do Toque de Midas. Foi porque lembrei-me da descrição da Criação na Bíblia. Ela possui alguns trechos em que Deus vê que tudo o que criou é bom.

"Disse Deus: 'Haja luz', e houve luz. Deus viu que a luz era boa  (...) À parte seca Deus chamou terra, e chamou mares ao conjunto das águas. E Deus viu que ficou bom. (...) A terra fez brotar a vegetação: plantas que dão sementes de acordo com as suas espécies, e árvores cujos frutos produzem sementes de acordo com as suas espécies. E Deus viu que ficou bom. (...) E fez Deus os dois grandes luminares: o luminar maior para governar o dia, e o luminar menor para governar a noite; e fez as estrelas. (...) E Deus viu que ficou bom. (...) Assim Deus criou os grandes animais aquáticos e os demais seres vivos que povoam as águas, de acordo com as suas espécies; e todas as aves, de acordo com as suas espécies. E Deus viu que ficou bom. (...) Deus fez os animais selvagens de acordo com as suas espécies, os rebanhos domésticos de acordo com as suas espécies, e os demais seres vivos da terra de acordo com as suas espécies. E Deus viu que ficou bom. (...) Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou."

Desviando: Não faltou um "e Deus viu que ficou bom" depois de ter criado o homem e a mulher?

Voltando: Assim concluí, o problema é o miserável "rei Midas", que estraga tudo onde põe a maldita mão.