"Observou-se mal a vida se não se tiver visto também a mão que, de uma maneira especialmente cuidadosa - mata."
Segundo a lenda do Toque de Midas, o deus grego Dionisio (ou Baco, no caso dos
romanos) deu por falta de seu tutor, Sileno, que bebera demais e
se perdera pelo caminho. Alguns camponeses encontraram o velho e o levaram até
o rei Midas, que cuidou dele por treze dias antes de devolvê-lo. Agradecido
pela presteza, Dionisio concedeu um desejo a Midas. O rei, então, pediu que
tudo quanto tocasse virasse ouro, pois, embora vivesse em abundância e fosse
muito rico, sempre desejava aumentar suas posses. O deus, mesmo triste por não
ter ouvido um pedido nobre, consentiu com o desejo, pois havia feito a promessa.
A partir de então, tudo o que o rei Midas tocava se transformava em ouro. As
flores, as pedras, os objetos, os animais e até os alimentos que tentava levar
a boca. Desesperado, frente a possibilidade de morrer de inanição, sofreu o
golpe final quando sua filha veio ao seu encontro. Na tentativa de afastá-la,
acabou tocando-a acidentalmente. Muito consternado, Midas orou a Dionisio para
que este desfizesse o pedido. Misericordioso, o deus grego atendeu à prece e orientou
que todos os objetos de ouro fossem banhados em água corrente, de maneira que retornassem
à forma primitiva. Assim Midas procedeu e teve sua filha de volta.
Desviando: Essa lenda adquiriu um caráter metafórico nos tempos atuais.
Hoje, um individuo que tem o Toque de Midas é alguém que consegue fazer
prosperar todos os negócios nos quais se envolve, ou que faz multiplicar os
lucros de tudo em que investe. Mas é estranho, pois a lenda parece querer me
ensinar outra lição, justamente contrária a instintiva sensação de que posses
trazem felicidade.
"Primeiro
vem a benção
De
tudo o que você sonhou
Mas
aí vêm as maldições
De
diamantes e anéis
A
princípio pelo menos, tinham seu encanto
Mas agora não dá para separar o falso do
verdadeiro"
Voltando: Lembrei-me do toque de Midas quando fiz um "pacote" mental com algumas
coisas muito estranhas que ouvi, vi e presenciei ao longo de um período
qualquer. Vou citar poucas delas e fazer alguns comentários separados entre parênteses.
Ah, e no final do texto vou explicar porque esse "pacote" me fez lembrar da
lenda.
Havia uma criança que não largava o celular por nada. Ela gostava muito
de usar um aplicativo que simulava relacionamentos interpessoais, para poder se
desenvolver emocionalmente. (Hoje, a tecnologia está muito avançada mesmo.
Alguém já disse que ela nos ajuda a resolver um bocado de problemas que não
existiam antes de ela aparecer.)
Um cachorro, após alguns anos de certo conforto, fora abandonado por
seus antigos donos. Hoje ele está mutilado, pois foi encontrado por um homem
que o usa para treinar outros cães para rinhas. (O importante é não
perder a esperança. Esse mundo é um lugar cheio de oportunidades, nem que seja para
servir de saco de pancadas, mesmo perdendo uma pata e ganhando várias
cicatrizes durante algumas surras. O que mais se pode querer, além de um canto para
dormir à noite e um pote de água? – sim, fui irônico. Aliás, fico tentando
imaginar o que passa pela cabeça de um cachorrinho desses quando está tudo em
silencio no escuro.
Um homem viu um rapaz roubando uma bicicleta. Então, o atropelou em um
ataque de fúria. O senhor passou diversas vezes com o carro sobre o corpo do
morto e disse que em um mundo, cuja Justiça não defende mais o cidadão de bem,
alguém tem que fazer alguma coisa. (Lembrei-me de Clarice, no conto
Mineirinho. Na ocasião ela falou de tiros, mas bem que poderia ser de múltiplo
atropelamento: "Esta é a lei. Mas há
alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de
segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o
sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo
de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo
em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro
tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.")
Uma mulher, sem perceber, teve o pneu de seu carro furado por um homem.
Enquanto ela esperava por ajuda, foi levada para uma casa onde acabou sendo
estuprada e esfaqueada até a morte. (Infelizmente ela não estava usando tapa
mamilos. Dizem que eles tem um poder muito grande na luta em defesa da mulher –
sim, ironia novamente; é bom deixar explicado.)
Fiquei sabendo de um funcionário, de uma empresa qualquer, que se fez de
humilde para o chefe, humilhou o subordinado e "puxou o tapete" do colega de
mesmo nível hierárquico. (Finalmente, as técnicas de coaching estão servindo para alguma coisa. O sucesso é a chave de tudo,
– ironia? – E sendo esse tipo de comportamento a chave, eu me pergunto, que
tipo de porta se quer abrir? Talvez seja para o País das Maravilhas.)
O atual presidente da república, após uma declaração preconceituosa, terminou
uma oração fazendo um sinal de arma com a mão. Enquanto isso, a oposição
dedilhava uma música maliciosa na viola, às 10h da manhã, em canal aberto,
agitando o gelo do whisky com o dedo, vestindo apenas roupas íntimas. (Talvez
devêssemos voltar ao governo dos antigos deuses gregos e romanos, pois, naquela
época, a luta pela emancipação divina nos prometia um futuro melhor do que o futuro
em que vivemos. Não dizem que o melhor da festa é esperar por ela?)
Enfim, por falta de paciência de minha parte (mentira, é que começou a
ficar muito longo), o "pacote" mental de coisas estranhas termina aqui. Mas não
fique triste, pois a TV, a internet, as ruas, o trabalho, a escola, o parque, todos
estão cheios de exemplos. É só querer ver.
Agora vem a explicação, o motivo pelo qual todos aqueles pontos me remeteram
à lenda do Toque de Midas. Foi porque lembrei-me da descrição da Criação na
Bíblia. Ela possui alguns trechos em que Deus vê que tudo o que criou é bom.
"Disse Deus: 'Haja luz', e houve luz. Deus viu
que a luz era boa (...) À parte seca
Deus chamou terra, e chamou mares ao conjunto das águas. E Deus viu que ficou
bom. (...) A terra fez brotar a vegetação: plantas que dão sementes de acordo
com as suas espécies, e árvores cujos frutos produzem sementes de acordo com as
suas espécies. E Deus viu que ficou bom. (...) E fez Deus os dois grandes
luminares: o luminar maior para governar o dia, e o luminar menor para governar
a noite; e fez as estrelas. (...) E Deus viu que ficou bom. (...) Assim Deus
criou os grandes animais aquáticos e os demais seres vivos que povoam as águas,
de acordo com as suas espécies; e todas as aves, de acordo com as suas
espécies. E Deus viu que ficou bom. (...) Deus fez os animais selvagens de
acordo com as suas espécies, os rebanhos domésticos de acordo com as suas
espécies, e os demais seres vivos da terra de acordo com as suas espécies. E
Deus viu que ficou bom. (...) Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus
o criou; homem e mulher os criou."
Desviando: Não faltou um "e Deus viu que ficou bom" depois de ter criado o
homem e a mulher?
Voltando: Assim concluí, o problema é o miserável "rei Midas", que estraga
tudo onde põe a maldita mão.