"Coisa rara: teu espelho tem minha cara"
Meu palpite é de que os humanos passaram a reconhecer a própria imagem
refletida no espelho, de que passaram a ter consciência de sua existência, por
causa de um "simples" raciocínio lógico. Provavelmente, há alguns milhares de
anos, uma dupla se aproximou de um riacho para refrescar-se. Um dos indivíduos
olhou as duas imagens refletidas na superfície da água e viu o seu parceiro ali
ao lado, naquele reflexo. Ele deve ter olhado para o amigo real e o comparado
com o amigo virtual, concluindo que a figura na água era o seu colega. Logo, a
imagem da outra pessoa, aquela ao lado do parceiro, só poderia ser dele
próprio. Finalmente, deve ter feito alguns movimentos com a mão, olhando-a ao
mesmo tempo que olhava para o reflexo dela na água e, bingo, "eu existo".
O processo de reconhecer a própria imagem é muito complexo. Algo que
corrobora essa dificuldade é o fato de que, entre todos os seres vivos no
planeta, apenas alguns tem essa capacidade, entre eles o homem, alguns primatas, os golfinhos
e os elefantes.
Desviando: Apesar de destacar uma possível conexão entre a autoconsciência
e a capacidade de reconhecer a própria imagem, essa sugestão está se limitando
apenas ao sentido da visão. Por exemplo, um cachorro não se reconhece ao ver
seu reflexo em um espelho, mas sabe quem ele é quando compara cheiros de urinas
diferentes. Ao reconhecer o cheiro de outros cachorros, ele logo marca o
território. Porém, ao reconhecer o próprio cheiro, ele não sente necessidade
pela remarcação. Então, pelo cheiro, um cachorro tem consciência de si mesmo.
Voltando: Eu me perguntei onde, na nossa mente, fica armazenada a capacidade
de se auto reconhecer. Eu imaginei o cérebro como um prato de espaguete. O
prato não é uniforme ou homogêneo. Ele tem um pouco mais de massa aqui, ou ali.
Pode estar um pouco mais temperado aqui, ou ali. Porém, em essência, o prato
não é nada além de vários fios de espaguete amontoados uns sobre os outros. O
cérebro pode ter várias partes e funções, mas, no micro, ele é só um emaranhado
de neurônios, para qualquer lado que você olhe. Então, essa é minha dúvida, a
autoconsciência faz parte do hardware, ou do software? Existe um software?
Avançando sobre o meu palpite de como o homem passou a reconhecer a si
mesmo, mas resumindo a cadeia de eventos desde a dupla no riacho, hoje nos
tornamos especialistas em tirar fotos de nós mesmos com os aparelhos celulares.
Então, eu fiquei com outra dúvida, eu cuido da minha imagem porque a reconheço,
ou porque reconheço a imagem do outro? Eu sou um egoísta, ou sou um imitador?
Se eu não soubesse que existo, eu seria menos egocêntrico? Sentiria
menos necessidade de ser compreendido? Sofreria menos angústias? Se eu
acreditasse que apenas o outro existe, nossa realidade seria melhor? Seríamos
um bocado de seres humanos tentando facilitar a vida de outro ser humano? Eu
choraria apenas a dor do outro e não mais a minha própria? Entenderia a
dificuldade do outro, sem a necessidade de tentar convencê-lo de que a minha é
tão grande quanto a dele, senão maior? Eu perceberia que somos iguais, mais
parecidos do que imaginamos, ou melhor, mais semelhantes do que gostaríamos que
fossemos? De fato, a única coisa que muda entre as pessoas são os rótulos. Já
os processos, eles são sempre exatamente os mesmos.
Em uma conversa com uma conhecida, ela desabafou:
"Depois que tornei pública
a minha escolha pelo homossexualismo, comecei a ser tratada diferente. Não refiro-me
somente às manifestações diretas, mas também àquelas pequenas, quando você está
em um ambiente e percebe que os outros medem as palavras, ou tomam cuidado com
o rumo que a conversa vai tomar. Sinto claramente que a minha escolha cria mais
barreiras para as outras pessoas do que para mim. São elas que temem falar
sobre o assunto, não eu. Elas agem como se fosse eu quem não tolerasse falar
sobre isso, simplesmente porque permaneço em silêncio. Por que deveria ser eu a
iniciar uma conversa sobre homossexualidade? E quando uma pessoa na roda de
amigos, corajosamente, tenta iniciar um diálogo, outras duas ou três logo nos
interrompem, com uma clara certeza de que estão me protegendo.
As pessoas olham-me
como se eu não soubesse nada sobre biologia, como se eu a ignorasse, assim como
um abstêmio que, dando o primeiro gole, ignora a repreensão dos 'inabaláveis'.
Sinto-me como herege da ciência, como se não soubesse distinguir fatos de opiniões.
É tão claro na minha mente que a ciência retrata apenas um único aspecto do
Universo, aquele que cabe em formulações matemáticas apenas.
Para que as pessoas
pudessem me entender, ou enlouquecer comigo, elas precisariam desconstruir
conceitos em suas mentes. Elas precisariam ouvir a palavra 'homossexual' e me
perguntar sinceramente o que isso quer dizer, como uma pessoa que teve amnésia,
ou como um ser de outro planeta que acabou de pousar no nosso. Elas precisariam
tentar criar os conceitos novamente em suas mentes, esquecendo-se das palavras
que já foram usadas, pois nosso padrão de linguagem sempre se demonstrou muito
limitado, e agora se demonstra também muito resoluto. Certa vez li nos seus
textos a ideia de que Alice não se maravilharia com o País das Maravilhas se
tivesse nascido nele. Enfim, a conversa precisaria começar do zero. Porém, quem
está disposto a dialogar dessa maneira?
Agora fico na dúvida,
se as pessoas tentam me proteger, ou se protegem a si mesmas. Será que temem
tanto assim algumas palavras mais acaloradas? Estou certa sobre o que acredito?
Não sei. Estou errada? Não sei. Eu só queria poder ser livre dos julgamentos
quando digo que as coisas não são necessariamente o que parecem. Gostaria que
eles considerassem apenas por um momento a ilusão. Como dizer aos sabidos que
eles estão tão perdidos quanto eu, mas não assumem para não perderem o conforto?
Como eu posso convencê-los de que a organização, o esclarecimento, a certeza e a
sanidade deles são mais delirantes que a minha loucura?"
Desviando: Chesterton contou em seu artigo "Uma tragédia de dois centavos", no livro Tremendas Trivialidades, que certa vez tentou convencer um dono de restaurante alemão de que
havia esquecido de pagar os charutos que comprara. Como ele não sabia falar
alemão, tentou usar mímica para explicar que estava de volta para sanar sua
dívida. Não obteve sucesso e concluiu:
"A civilização está
fundada sobre abstrações. A ideia de dívida não pode ser transmitida por
movimentos físicos, porque é abstrata. E a civilização obviamente não seria
nada sem dívidas. Assim, quando indivíduos de cabeça dura que estudam
sociologia científica (que não existe) vêm e lhes dizem que a civilização é
material ou indiferente ao abstrato, perguntem-se a si mesmos quantas das
coisas que formam nossa sociedade, a Lei ou as Ações da Bolsa ou a Dívida
Pública, vocês conseguiriam transmitir com suas faces e dez dedos, fazendo
caretas e gesticulando para um dono de restaurante alemão."
Voltando: A minha resposta para aquela conhecida? "Não consigo encontrar palavras que possam lhe guiar, ou ao menos consolar;
mas gostaria de lhe pedir permissão para colocar o seu desabafo no meu blog, apenas
trocando a palavra 'homossexual' por 'cristão'". Obviamente, fui autorizado,
porque ela também não conseguiu encontrar palavras que pudessem me guiar ou me
consolar.