quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Pai, Afasta de Mim esse Cale-se

"Dê a todas as pessoas seus ouvidos, mas a poucas a sua voz."


Enquanto eu lia uma coluna sobre "quais países em que mais morreram jornalistas em 2018", lembrei-me de ter visto outra reportagem, em um telejornal, sobre um estudo realizado pela ONG britânica Article 19, apontando que o ano de 2017 foi o mais perigoso para os jornalistas. Segundo o estudo daquela ONG, foram pelo menos 78 repórteres mortos naquele ano, sem mencionar prisões. O telejornal, que mostrou os resultados do estudo, fez a seguinte afirmação, com exatamente essas palavras: "No Brasil, a liberdade de imprensa também diminuiu".

Como a liberdade de imprensa é mensurada? Qual o parâmetro? Baseado em qual critério se conclui que a liberdade diminui ou aumenta? De qualquer maneira, fato é que o telejornal, bem como o colunista, colocou em cheque a liberdade de expressão.

Desviando: Eu fiquei tentando definir minha opinião, se acredito que a liberdade de expressão está correndo algum risco mesmo. Porém, não consegui chegar a conclusão alguma. Vi matérias como aquelas, sobre jornalistas assassinados e perseguidos, e também vi vídeos como este, de um comediante sofrendo tentativa de censura, através de um aparelho estatal, por grupos políticos, que, ironicamente, se classificam como progressistas. Somente com esses exemplos, talvez eu devesse acreditar que sim, estamos sofrendo censura. Porém, também vi vídeos como este (na verdade é um trailer), em que crenças religiosas são livremente criticadas (não é bem uma crítica, é só chacota mesmo, mas isso não o desqualifica como uma forma de expressão). Ou vídeos como este, com campanhas pró-aborto, mesmo em um país conservador. Ou ainda este, em que uma ativista homossexual se manifesta livremente sem sofrer nenhum tipo de censura, ainda que o ato dela esteja censurando o outro grupo. Dessa forma, com esses outros exemplos, eu tenderia a acreditar que não, não estamos sofrendo censura.

Ao ver todos os exemplos, questionei-me, a crítica é soberana, ou ela pode ser criticada? Se for soberana, quem faz a crítica verdadeira? Quem está imune, aquele que é a favor ou aquele que é contra aquilo que se define como status quo? Quem dita a regra do que pode ser criticado e do que não pode? Se a crítica não for soberana, eu posso criticar a crítica? Ou serei taxado de repressor? Às vezes, parece-me que os promotores da liberdade de expressão também comentem censura, por isso eu disse que não sei o que concluir.

Voltando: A censura à liberdade de expressão é mais comumente abordada do ponto de vista da voz que é silenciada. Porém, eu acredito que existe uma segunda abordagem, que é tão ou mais perigosa quanto a primeira. Refiro-me a voz que é ignorada. Vamos por partes...

Por exemplo, Marielle Franco. Mulher, negra e homossexual. Lutando legitimamente por essas três causas, teve sua voz silenciada. Ela foi brutalmente executada, sendo que os responsáveis só começaram a ser identificados um ano após o crime (se é que foram mesmo). Aliás, o processo de investigação sofreu comprovadamente propositadas interferências. E sabe o que eu observei? Após tanto tempo do ocorrido, eu não somente decorei o nome dela, como sei que se escreve com duplo L, sem ter que recorrer a qualquer tipo de fonte.

Há uma semana, cinco pessoas foram mortas na Catedral de Campinas. Um crime igualmente terrível. No entanto, eu não sei o nome de qualquer uma das vítimas. Por que existe essa diferença? Por que eu sei tanto sobre Marielle Franco (com nome e sobrenome), mas não sei nada sobre ao menos uma das cinco vitimas da Catedral? Aliás, qual o nome do motorista que estava com a Marielle Franco mesmo? Vou precisar recorrer às fontes.

Primeiro, quero deixar claro que eu não estou minimizando a morte de Marielle Franco comparativamente a morte do motorista dela, ou a morte de qualquer uma das cinco vitimas da Catedral de Campinas. Segundo, quero lhe alertar para o fato de que as pessoas que falam somente sobre ela não se sentem compelidas, como eu me senti, a fazer esse mesmo tipo de esclarecimento, por citarem "um milhão de vezes" o nome dela, mas não citarem o nome do motorista ou das cinco vitimas da Catedral na mesma proporção. Você não acha estranho essa diferença? Pois eu acho bastante incoerente. Por isso eu disse, ignorar uma voz pode ser tão ou mais perigoso quanto silenciar outra.

Tudo bem, talvez alguém possa propor que a diferença entre essas mortes esteja atrelada as causas pelas quais a Marielle Franco lutava, tornando a perda dela mais significativa para a sociedade do que a perda das outras cinco vitimas – não vamos apelar para os números, pois o segundo caso ganhou. Neste caso, deveria eu concluir que as causas pelas quais se lutam são maiores que a vida? Se a resposta for não, continuo sem entender porque a imprensa "grita" o nome de Marielle Franco, mas ignora o nome das outras cinco vitimas da Catedral. Entretanto, se a resposta for sim, e a causa pela qual se luta é maior que a vida, então me sentirei moralmente livre para declinar da causa da Marielle Franco, escolhendo "gritar" por outra causa, a de duas mulheres também negras (não sei porque é importante mencionar a cor), uma com um filho em torno de sete anos e outra com um filho em torno de três anos.

Não vou colocar o vídeo aqui para lhe mostrar o que ocorreu com as duas mulheres que citei, pois as imagens são horrendas, mas as descreverei. A primeira mulher, de mãos dadas com seu filho de sete anos, é escoltada por homens armados com fuzis. Enquanto ela caminha até o lugar onde será executada, os homens dão tapas em sua face – não na bochecha, mas no meio da cara. A criança olha o tempo todo para o rosto da mãe sendo esbofeteado. A segunda mulher dá os mesmos passos que a primeira, com os mesmos tapas no rosto, mas com o filho de três anos pendurado nas costas. Já no local da execução, ambas as mulheres, bem como as crianças, são vendadas. Os homens se afastam em torno de cinco metros e fuzilam as mães e os filhos com vários tiros. Eles continuam atirando mesmo com todos já mortos no chão. A câmera se aproxima para filmar como ficaram os corpos, mas eu parei de ver o vídeo neste momento. Não sei se mostraram algo mesmo, tão próximo. Não consegui terminar de ver.

Enfim, fiquei imaginando o que passou pela cabeça das mulheres e das crianças naqueles últimos passos. E o que pensavam depois, quando os executores se afastavam, na iminência dos tiros. Tentei traduzir as sensações olhando as expressões dos olhos delas a cada tapa. E quanto as crianças? Que sentimento se tem quando você percebe que sua protetora fora subjugada? Que medo se sente quando você, ainda criança, vê sua mãe sendo esbofeteada na face e sabe que não pode fazer nada para ajudá-la? O consolo é que, após o primeiro tiro, qualquer sentimento, por pior que seja, não fará a menor diferença.


E quer saber porque aquelas duas mulheres e duas crianças morreram? Porque eram cristãs. Como se pode ver, elas não tinham causa alguma pelas quais lutar. O desfecho de suas vidas mostrou que tinham sim uma causa pela qual morrer. Se ao menos tivesse algum efeito gritar "meu corpo, minhas regras", mas a física que explica uma bala penetrando a carne é indiferente a qualquer vontade humana. Não sabemos os seus nomes e ninguém que detém o microfone nas mãos se interessou pela morte delas. Mesmo o vídeo que eu vi, ele foi gravado pelos próprios assassinos. As duas mulheres e as duas crianças morreram anônimas, sem ninguém que as defendessem em um mundo com quase oito bilhões de pessoas.

De agora em diante, sempre que alguém "gritar" aos quatro ventos o nome de Marielle Franco, eu "gritarei" pela morte daquelas duas mulheres e crianças. Passo a deixar o vídeo guardado em meus arquivos para essas ocasiões, para quem quiser ver, para quem quiser chorar comigo.

Quem decide qual luta deve estar em pauta? A luta de quem é digna de concentrar a voz de uma nação? Não consegui concluir se vivemos censura ou não, mas afirmo, sem sombra de dúvidas, que existem mais vozes ignoradas do que silenciadas. Somos fantoches, no alto de nossas pseudo intelectualidade e nobreza, gritando nomes que são sussurrados aos nossos ouvidos. Faça uma autoavaliação, qual a origem da luta que você trava? Você as escolheu, ou as escolheram por você? A partir de hoje vou usar o seguinte parâmetro para decidir onde vou focar minha voz: que grito não está sendo ouvido? que nome não está sendo mencionado? Pois minha crítica não é direcionada a quem foi injustiçado, mas sim às reais motivações de quem está oferecendo ajuda.