"Que o teu orgulho e objetivo consistam em pôr no teu trabalho algo que se assemelhe a um milagre."
Estudando um pouco a história de algumas instituições filantrópicas,
achei interessante divulgar um caso. Não é que eu tenha elementos para assegurar
a entidade escolhida como a mais idônea, ou que eu a considere como minha
representante, ou mesmo como a melhor entre as pesquisadas – apesar de
identificar-me com ela. O ponto é que eu precisava de um exemplo para a
reflexão, então acabei selecionando aquela que está ao meu alcance.
O Exército de Salvação é de denominação cristã protestante e uma das maiores
instituições de caridade do mundo (se quiser ajudar clique aqui). Foi fundada em
1865, por William Booth, em Londres. Ela
chegou ao Brasil em 1922 e atua em mais de 120 países através de igrejas, lojas
beneficentes, abrigos, centros comunitários, hospitais, escolas, lares para
idosos, creches, centros de recuperação, veículos e equipes de emergência. O
lema da instituição são os três "S": Sopa; Sabão; e Salvação.
Desviando: Uma curiosidade do período da fundação foi que, à medida que
o Exército de Salvação crescia em seu país de origem, no final do século XIX,
também crescia uma oposição. Formou-se o Exército do Esqueleto, que perturbava os
encontros e as atividades sociais do Exército de Salvação. Quem fazia parte da resistência?
Donos de bares e tabernas que estavam perdendo suas clientelas, já que as
pessoas deixavam seus vícios para se juntar as causas sociais.
Voltando: E pensando em socorro (cogitei usar a palavra caridade, mas
ela aponta mais para quem doa do que para quem recebe), lembrei-me de uma
discussão com um colega. Devemos mesmo fazer algo pela sociedade? Ou melhor, devemos
mesmo socorrer quem precisa, fazendo algo que, a princípio, seria
responsabilidade do Estado?
Eu não queria entrar nesse mérito, mas sinto-me compelido a esclarecer. Eu
não acredito que o Estado tenha que dar um prato de comida a todos os necessitados,
mas ele poderia atuar nesse problema de outra forma, investindo na sociedade –
por exemplo, na economia, na educação, na indústria etc. Assim, haveria um
melhor casamento entre as disponibilidades de emprego e de mão de obra. E foi exatamente
aí que surgiu a dúvida. Se todos dermos um prato de comida a quem precisa, a
incompetência do Estado não ficará mascarada? Não seria melhor que não socorrêssemos?
Não consigo divagar sobre essa dúvida sem "começar do começo". Existe o
caminho mais fácil, que, inclusive, é o que está em vigor desde os primórdios. E
ele é tão fácil – por não exigir esforço de raciocínio – que torna-se
extremamente difícil evitá-lo. É uma corrente quase sem elos fracos. Exemplos? Se
uma pessoa leva um tapa no rosto, é justificável, ou pelo menos explicável, que
ela "pague na mesma moeda". Se falam mal dela, compreende-se por que ela fala mal
de outras pessoas também. Se mentem para ela, não é estranho que ela também
tenha suas "mentirinhas". Se não podemos ter, então vamos procurar alternativas
paralelas, não é justo que somente nós fiquemos sem.
Desviando: Lembro-me de, quando criança, pedir autorização a minha mãe
para poder acompanhar amigos em alguns passeios. Quando ela desconfiava de
algum risco, prontamente me proibia. Eu tentava argumentar, "mas meu amigo vai".
Ela respondia, "se ele se jogar no poço você também vai?". Parece ingênuo, mas
nós ainda nos comportamos como as crianças que fomos outrora, a única diferença
é que nossas brincadeiras estão mais sérias.
Voltando: A situação pode se complicar caso as leis e os códigos morais
comecem a ser colocados em cheque. Não pense que estou exagerando. Já ouviu a
história, recente, de que cada um tem sua própria verdade e que é politicamente
incorreto contrariá-la? Se matarem um ente querido meu, eu posso agarrar-me a
minha verdade e procurar por vingança. Se me roubarem, é simples, eu roubo outra
pessoa e reponho a minha parte. E por aí vai...
Hoje o revide ainda é crime, mas qual será a evolução de um mundo de
quase oito bilhões de verdades? Sabe qual o problema em aplaudir versos como, "é pela paz que eu não quero seguir admitindo"? É que qualquer tipo de ideologia pode se apoderar deles,
principalmente em um mundo de verdades relativas.
Cada um por si, "olho por olho e dente por dente". Essa é a "lei da selva",
mas não da consciência. Essa é a lei de animais, mas não de seres que pensam. Em
épocas "menos" abastadas intelectualmente, mas não conceitualmente, o "poeta" diria
que isso é "carne", mas não "espírito" (concordo, seria ultrajante pensar que os
donos contemporâneos do Universo pudessem aceitar explicações utilizando
palavras tão primitivas, mesmo que seja necessário pensar para entendê-las).
Como eu disse, é difícil quebrar a corrente, mais fácil é terceirizar a
responsabilidade. É confortável dizer que eu sou o produto do sistema, pois
isso não exige mudança de minha parte – inclusive, a responsabilidade do
sistema já tornou-se um postulado, como se define em
filosofia. Desconfortável é pensar que o sistema é o produto da minha
existência. Eu reclamo do mundo, mas não tenho a mínima intenção de deixar de
ser seu facilitador. Eu continuo achando que não faço parte do Estado.
É óbvio que, ao levar um tapa no rosto, eu sinto uma ânsia em retribuir na
mesma medida, ou em proporções até maiores, para que não seja descontado apenas
a violência física, mas também a moral. É óbvio que, quando eu vejo poucas
pessoas ajudando, eu fico desanimado e penso em desistir. Porém, como diria a
personagem Neo, no filme Matrix Revolutions, o problema é a escolha. Somente através da escolha é possível quebrar
a corrente, e ela exige esforço. A escolha faz parte da consciência, enquanto o
instinto é pura inércia. Aliás, já falei um pouco de escolha aqui.
Infelizmente, eu não acredito que a Humanidade vai melhorar, tampouco
que teremos cada vez mais pessoas construindo um mundo melhor. Nós matamos tanto
quanto matávamos há mil anos. Estupramos, roubamos, mentimos, traímos, distribuímos mal tanto quanto há dois mil anos (já mencionei isso aqui). Nossos Governos
não são melhores do que os Governos das civilizações que nos precederam, mas são
apenas mais organizados, ou, mais especificamente, só estão gerenciando em
maior escala – hoje é mundial. Nós somos os responsáveis pelo nosso fim.
Se acho que não vamos melhorar, porque quebrar a corrente? Por que não
se entregar para acelerar o processo de degeneração? Por que não desistir e
deixar cada um por si? Por que ajudar? Não sei responder essas perguntas. O que
sei é que existem dois tipos de pessoas e com qual delas quero ser comparado.
Existem as que esperam por milagres e existem as que são parte do milagre.
Desviando: Existem duas formas de entender a multiplicação dos pães.
A primeira é a maneira tradicional, com um cesto onde, à medida que pães e
peixes eram retirados e entregues a multidão, novos eram gerados lá dentro (já discorri
aqui
sobre o gênio da lâmpada). A segunda forma é prestar atenção aos detalhes: disse
aos discípulos, "deem vocês de comer à multidão"; pediu que a multidão (pelo
menos 5 mil homens, sem citar mulheres e crianças) se sentassem em grupos de
cinquenta; ergueu os cinco pães e os dois peixes (para que todos vissem o que
seria feito), deu graças, os partiu e entregou aos discípulos que distribuíram
às pessoas; consequentemente, aqueles que estavam sentados e tinham o que
dividir entenderam o exemplo e fizeram o mesmo; a multidão se fartou e ainda juntaram-se
doze cestos com as sobras.
Voltando: Não é que os milagres não virão, pois eles virão sim. O ponto
é que nós somos o gatilho para eles. Lembrando de outra história daquele livro
antigo, já que hoje eu estou bíblico, o Mar Vermelho se abriu somente depois que Moisés,
expondo-se ao julgamento de milhares de pessoas, arriscando seu orgulho próprio
e sua reputação, caminhou até a praia e ousou esticar o braço sobre água. Aliás,
ele fez isso sozinho, ninguém caminhou com ele até o mar, nem ao menos como
apoio moral.
A pergunta, portanto, não é se devemos ou não. A questão correta é se
queremos ou não. Quem sabe o que esse mundo esteja precisando seja de mais Exército nas ruas.